Memorias postumas de uma categoria em transformaçao: a formalizaçào do trabalho informal
1 Introduçâo
Ao longo de varias décadas, inumeros fenômenos sociais tornam a esfera social do
trabalho alvo de importantes reflexôes. Para grande parte dos analistas sociais de cunho
neoliberal, o mercado de trabalho seria o unico meio de assegurar as condiçôes de reproduçâo
social dos indMduos. Mas, nem todas as pessoas estâo integradas aos sistemas sociais via
mercado e nem podem estar. Ha alternativas de socializaçâo e reproduçâo da força de trabalho
social ao mercado de trabalho e essas varias formas de alocaçâo e distribuiçâo da força de
trabalho social possibilitam que se pense o trabalho para além de sua unica determinaçâo.
Ao se abordar a esfera do trabalho, ha uma pluralidade de vozes, mas nem todas falam a
mesma lmgua. Muitos ainda acreditam que o trabalho formal pode ser estendido a todos os
trabalhadores de uma sociedade; outros defendem a possibilidade do pleno emprego, mesmo
diante de taxas e mdices de desemprego que nâo param de crescer em todo o mundo. Enquanto o
trabalho formal se torna, cada vez mais, coisa rara para muitas pessoas em diversos pa^ses, o
chamado mercado de trabalho informal, vulgarmente chamado de economia subterrânea, parece
assustar a todos com um crescimento espantoso. Assim é que diversos governos lutam para que o
trabalho informal seja formalizado, aumentando com isso sua base de arrecadaçâo fiscal ao
mesmo tempo em que diminuiriam as taxas de desemprego. E é aqui que parece haver problemas
com conceitos e definiçôes quando se trata do trabalho dito formal e informal. Como definir essas
duas noçôes? Afirmando que tudo o que nâo é formal é, por exclusâo, informal? Mas, o que
acontece quando a propria noçâo de trabalho formal sofre mudanças e, em uma crise sem
precedentes, se metamorfoseia em informal? Como manter os discursos de incorporaçâo de
imensos contingentes de trabalhadores ao mercado formal de mâo-de-obra quando o seu
conteudo, agora, exibe aspectos justamente da noçâo que antes lhe possibilitava definir sua
identidade por oposiçâo? Em poucas palavras, quando o trabalho informal se torna ele mesmo o
modelo de trabalho formal, como sustentar poKticas publicas e discursos sobre a urgência de inibir,
erradicar ou formalizar a esfera do trabalho informal? É pensando em trazer alguns aspectos dessa
complexa discussâo que esse artigo se situa. É, portanto, tarefa central desse artigo mostrar a
extrema dificuldade de se definir teoricamente o conceito do que seja “informalidade” sem
relativizar o ponto de partida do pesquisador. Ao longo desse artigo, vai-se procurar trazer ao
debate as consideraçôes de varios autores que também buscam uma definiçâo do trabalho
informal, tornando ainda mais complexa e heterogênea essa tarefa. Por fim, pretende-se realizar
uma pequena discussâo com base nas argumentaçôes de Claus Offe e Enzo Mingione a respeito
da dimensâo do trabalho classificado como informal e mesmo da crise do trabalho abstrato,
produtor de valores de troca.
2 O informal como uma bandeira
Parece que uma boa forma de se iniciar um esboço acerca da noçâo de informalidade é
deixar claro, a priori, a impossibilidade de se definir um conceito geral e univoco de trabalho,
economia, setor informal ou, ainda, informalidade e, mais contemporaneamente, dos chamados
processos de informalizaçâo. Em outras palavras, nâo é possivel dar uma definiçâo formal de
trabalho informal diante dos inumeros processos que atravessam essa esfera tâo cara a uma
grande parte da populaçâo trabalhadora do globo. O mais adequado, ao que parece, é iniciar a
argumentaçâo adotando algumas consideraçôes, como faz Lisa Peattie em suas perspectivas
analfticas (Peattie, 1987). Ou seja, é preciso algum tipo de relativizaçâo de natureza antropologica
capaz de dissolver definiçôes conceituais univocas que nâo levem em conta as particularidades
dos multiplos significados dessa esfera social. Cada vez mais, torna-se claro para muitos analistas
que nâo ha nem pode haver uma definiçâo univoca para a noçâo de trabalho informal, mas, sim,
76 Organizaçoes Rurais e Agroindustriais - v.6 - n.2 - julho/dezembro 2004