Euler David de Siqueira
4 A crise da sociedade do trabalho... abstrato
Até o momento, todas as discussôes realizadas expressam, de uma forma ou de outra, o
trabalho informal como o centro de suas problematizaçôes. Offe (1984) discute os limites de uma
sociedade univocamente organizada e estruturada a partir do mercado de trabalho produtor de
mais-valia ou valor de troca. Ja Mingione (1991) aborda a fragmentaçâo e a pulverizaçâo da
sociedade do trabalho abstrato com base no conceito denominado de socialization mixs. Mingione
desenvolve uma abordagem centrada na intensa fragmentaçâo e pulverizaçâo das formas de
sociabilidade em vez de vê-la estruturada apenas por uma unica forma de sociabilidade,
nomeadamente a do mercado de trabalho.
Para Mingione (1991) & Offe (1991), existe uma diferença de pressupostos
epistemologicos que torna diffcil a intercomunicabilidade entre ambas as teorias. No entanto, suas
teorias possuem alguns pontos espetfficos que se tocam. Apesar de ambos estarem falando dos
limites do centramento do mercado de trabalho, ha diferenças significativas em suas analises.
Sociologo italiano, Mingione (1991) toma como pressuposto central, em sua analise da
sociedade contemporânea, a idéia de que o mercado de trabalho, baseado no assalariamento, nâo
é a unica forma de sociabilidade criada pelos homens. O autor realiza uma crïtica ao paradigma do
mercado auto-regulado, construindo sua concepçâo a partir de elementos ja desenvolvidos por
Karl Polanyi (1980). Segundo Polanyi (1980), para que o mercado auto-regulado pudesse se
constituir, os homens tiveram de destruir dois outros processos de troca ou comunicaçâo: as
instituiçôes sociais chamadas de reciprocidade e redistribuiçâo. O primeiro tipo de sociabilidade
funciona quando um serviço ou um bem é dado a uma outra pessoa sem que haja uma contra-
dadiva imediata. Ha, portanto, uma circulaçâo de serviços ou bens em uma dada comunidade até
que ao final de uma cadeia de dadivas e contra-dadivas, prestaçôes e contraprestaçôes, a primeira
dadiva retorne ao primeiro indMduo que fez a doaçâo. A segunda forma de sociabilidade opera
nos moldes do potlach melanésio, sistemas de prestaçôes do tipo totais brilhantemente analisados
por Mauss em 1920 (Mauss, 1974). Durante um determinado perïodo do ano, acumulam-se bens
que serâo redistribddos em cerimônias totais (religiosas, econômicas, polfticas, técnicas, magicas,
etc.) espetfficas. Por sua vez, a cada nova cerimônia ou festa, um concorrente tentara superar a
dadiva do primeiro, promovendo uma destruiçâo suntuosa de bens e mercadorias sempre em
maiores quantidades que o anterior. Ao conceber o mercado auto-regulado como uma criaçâo
historica dos homens, Polanyi (1980) naturaliza as outras duas formas de troca ou de
sociabilidade. O importante é frisar que ambas as formas de trocas sâo constrωdas socialmente.
Nenhuma delas seria natural em oposiçâo ao mercado, visto como uma criaçâo artificial dos
homens. O que para Polanyi seria uma construçâo historica, o mercado, para os liberais seria algo
natural e que brota espontaneamente da natureza interior dos homens. Essa visâo se aproxima
sobremaneira da teoria liberal defendida por De Soto (1989).
Um dos pontos centrais na analise de Mingione (1991) é o uso do conceito de socialization
mixes a fim de mostrar que ha algo a mais do que simplesmente o mercado de trabalho
possibilitando a reprodutibilidade social e simbolica dos homens. Mingione (1991) contesta, em
todos os niveis, a idéia de que a disseminaçâo de uma sociedade industrial atingiria
necessariamente todos os pa^ses do globo ou mesmo todo uma naçâo. Segundo Mingione (1991),
o processo de industrializaçâo e assalariamento nâo estaria ocorrendo tal como o previsto por
alguns teoricos liberais. O autor trata de sociedades fragmentadas e de um padrâo de unificaçâo
ou de integraçâo misto. Contudo, ao fazer tal asserçâo, coloca em cheque mesmo o que acabou
de defender. Ou seja, de que haveria um prin^pio de integraçâo baseado na fragmentaçâo. Em
Mingione (1991), a sociedade de fato se integra, so que via fragmentaçâo. Mingione comete
algumas falhas nâo tâo graves, tais como caracterizar todas as sociedades industriais como
seguindo ou sendo somente de um tipo. Ou seja, essas sociedades seriam estruturadas a partir de
mercados auto-regulados. Em outras palavras, o padrâo de reproduçâo social se daria via mercado
auto-regulado. Ha sociedades que se organizam a partir de padrôes via mercado auto-regulado e
Organizaçoes Rurais e Agroindustriais - v.6 - n.2 - julho/dezembro 2004
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